"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
Identidade da Psicomotricidade
1. in V. da Fonseca & R. Martín.f (Eds.)
Progressos em PsicorTwtricidade,
pp. 29-40, Lisboa: Edições FMH.
2
Questões sobre a Identidade da Psicomotricidade
- As Práticas entre o Instrumental e o Relacional
Rui Martins
Partindo de um pequeno historial do desenvolvimento da psico motricidade
e das diferentes concepções que caracterizaram o seu percurso, o autor pro-
cura com o auxilio de contributos de autores incontornáveis na fundamen-
tação desta evolução, situar o conceito actual da psicomotricidade, como
área científica com contextos próprios de observação e intervenção. Em
termos das práticas psicomotoras procura-se também situar a com-
plementaridade e não o antagonismo, das duas correntes mais importantes
referentes ao contexto de base "instrumental", com forte influência
cognitiviata e neuropsicilógica, e ao contexto dito "relacional", com acen-
tuada influência psicodinâmica.
A psicomotricidade tem sido uma área científica marcada pela
pluralidade, cuja história tem sido caracterizada por práticas diversas de tipo,
(re)educativo e terapêutico, fundamentadas segundo uma determinada repre-
sentação da infância e do desenvolvimento infantil, baseada em determina-
dos e variados modelos teóricos, nomeadamente, da psicanálise, da
fenomenologia, do cognitivismo, da neurologia e das abordagens sistémicas.
Fauché (1993), apresenta-nos uma sistematização que ilustra de algu-
ma maneira esta evolução, começando por apontar como referência teórica
inicial, expressa no final do século XIX, aquela que numa perspectiva volun-
tarista valoriza a solicitação dos chamados centros psicomotores, sendo a
vontade situada num local preciso do cérebro, numa função intermédia entre
a ideia e o movimento. Neste caso, os exercícios propostos por autores como
b
2. 30 RUI MARTINS
Charcot, Tissié, Janet ou Pétat, visariam estimular esses centros psicomotores
restabelecendo a função volitiva, sobrepondo-se esta aos erros do pensamen-
to.
Na década de 30/40, começa a ser valorizado um modelo integracionista
que defende que o funcionamento psíquico depende de uma organização pro-
gressiva, em que o mais arcaico é progressivamente integrado nas estruturas
superiores, e em que as reacções emocionais são inibidas pela actividade
automática, a qual é por sua vez controlada pelo acto voluntário e reflectido.
Este modelo, apoia-se fortemente na teoria walloniana relativa à explicação
da génese do psiquismo na criança, e assume a integração tónico-emocional
como objecto da psicomotricidade, na dependência dos automatismos mo-
tores e dos actos inteligentes, mediados pela actividade reflexiva.
Nos anos 50, tendo-se constatado que quadros como a dislexia, a
disortografia, os tiques, a gaguês, a instabilidade e a inibição estavam corre-
lacionados com um funcionamento neuro-motor perturbado, surge uma prá-
tica psicomotora centrada no desenvolvimento do esquema corporal e na
estruturação espacial e ritmíca. Esta perspectiva, partia do princípio de que
a criança obtendo o domínio e conhecimento de si pela acção controlada e
organizada no espaço e no tempo, poderia restaurar os meios fundamentais
para as aprendizagens escolares. Esta corrente que é influenciada pela teoria
piagetiana, e onde se integra a perspectiva da psicocinética de Le Boulch, é
caracterizada pela concepção de que o pensamento nasce do movimento, e
encara a psicomotricidade como contexto promotor do desenvolvimento da
inteligência e do pensamento. Consequentemente, nesse período as práticas
psicomotoras envolviam um conjunto de procedimentos sistematizados e com
regras próprias, assentes na racionalidade das situações.
No entanto, no início dos anos 70 começou a acentuar-se a importân-
cia atribuída à acção terapêutica da psicomotricidade, valorizando-se a com-
ponente relacional. e os mecanismos inconscientes inerentes à
indissociabilidade da vivência corporal e da estruturação do psiquismo. O
inconsciente e a sua expressão tónica, se ligados a uma história pessoal
centrada na repressão, impedem a criatividade e a expressão da individuali-
dade e da identidade plena, e portanto no contexto de intervenção da
psicomotricidade haverá que deixar a criança explorar livremente as possibi-
lidades de afirmação dos seus desejos, num clima permissivo e num espaço
referenciado por uma atmosfera afectiva e um diálogo de base tónico-emoci-
onal. O problema psicomotor, a perturbação comportamental ou o insucesso
escolar, têm nesta perspectiva um valor sintomático, não redutível a uma
disfunção neuro-motora ou a um déficite instrumental, mas entendidos no
contexto de uma história pessoal impregnada de repressão e de interdições.
Será então pelo jogo livre, pela expressão sobre todas as formas possíveis, e
3. QUESTÓES SOBRE A IDENTIDADE DA PSICOMOTRICIDADE 31
pelas atitudes permissivas e de escuta do terapeuta, que será possível ultra-
passar esses bloqueios, reconstruindo a representação modelar da imagem do
adulto, como veículo securizador para a afirmação do desejo criativo,
assimilador e transformador do meio.
Em síntese, e de acordo com Rosmarie Schnydrig (1994), poderemos
dizer que nos primórdios do desenvolvimento da psicomotricidade, como área
científica com referenciais próprios de formação, investigação e actividade
clínica, falava-se essencialmente de reeducação psicomotora e de problemas
psicomotores. O objectivo da prática era então essencialmente o de corrigir
os problemas motores e espacio-temporais através de uma aprendizagem pro-
gressiva, com enfoque instrumental e cognitivo.
Progressivamente, com a constatação de que as perturbações envolvi-
am aspectos que ultrapassavam o simples 'déficite localizado de uma função,
começou-se a falar de terapia psicomotora e de sintomas psicomotores, e o
objectivo da prática passou a centrar-se na globalidade da pessoa, tendo em
conta quer os aspectos funcionais quer relacionais. A intervenção psicomotora
assume então como objectivo fundamental, a realização da criança enquanto
pesssQa. Não se trata já de gerir uma descoordenação, mas sim de possibili-
tar a expressão da sua personalidade.
Isto significa que os psicomotricistas consideram que as potencialidades
motoras, mentais e emocionais de um indivíduo estão em constante interacção
e que o corpo é o local de manifestação de todo o ser, e que para perceber o
que exprime o corpo, é necessário situá-lo no seu envolvimento ecológico,
com o qual está em interacção permanente. A maior parte das actividades
lúdicas e simbólicas das crianças, são uma boa representação desta integração.
Liévre & Staes (1992) sugerem-nos a este propósito que imaginemos
uma situação de interacção infantil num contexto lúdico. Num qualquer es-
paço de recreio, um grupo de crianças brinca por ex o , aos pais e aos filhos.
Essas crianças utilizam o seu corpo para exprimir as personagens que repre-
sentam, as suas emoções, sentimentos e acções. Escolheram um espaço para
jogar, que utilizam de acordo com a sua personalidade, e mobilaram esse
espaço de forma imaginária.
O tempo será real quanto à duração e ao ritmo do jogo, mas também
imaginário quanto à representação do tempo que passa (o amanhã, a semana
seguinte ... ).
Por outro lado, ao representarem estas cenas, as crianças vão fazer apelo
ao seu vivido anterior, o que lhes possibilita a compreensão das atitudes dos
outros, no plano verbal e não verbal, num processo de "escuta" que permite
que a interacção seja lógica e coerente.
A personalidade das crianças revela-se segundo os papéis que assumem,
e a adaptabilidade é estimulada pela possibilidade de antecipar a relativa
b
4. 32 RUI MARTINS
imprevisibilidade dos comportamentos e acções dos outros, pela afirmação
do imaginário e pelo conhecimento e controlo de si próprio.
Esta situação imaginária, constitui uma boa representação da estreita
relação que existe na actividade humana, entre a motricidade, o psiquismo e
a afectividade.
Na realidade, as praxis psicomotoras situam a actividade humana como
um investimento global da personalidade da pessoa em acção, em que as
modificações tónicas, as posturas e os movimentos, são significantes de toda
a história pessoal do sujeito, das suas representações, das suas vivências tó-
nico-emocionais e do seu imaginário. A prática psicomotora é unificadora,
no sentido em que veicula os laços entre o corpo e a actividade mental, o real
e o imaginário, o espaço e o tempo, melhorando o potencial adaptativo do
sujeito, ou seja, as possibilidades de realização nas trocas com o envolvimento.
Dentro desta concepção genérica, as práticas psicomotoras podem de-
senvolver-se em contextos de acção diferenciados, em função de critérios que
têm como referência a própria história does) sujeito(s), a origem e caracterís-
ticas das suas dificuldades, as características do meio institucional onde é feito
o atendimento, e até as características da personalidade e da formação pro-
fissional do orientador da intervenção.
Em função destes critérios, o enfoque da actividade poderá incidir na
valorização da componente relacional e psico-afectiva, envolvendo fundamen-
talmente a gestão da problemática da identidade e da fusionalidade, possibi-
litando a expressividade pulsional do sujeito, e o reinvestimento na pessoa
do adulto como agente securizador e garante do desejo de interrelação com o
mundo das coisas e dos outros.
Por outro lado, a prática pode centrar-se particularmente na componente
instrumental da actividade, envolvendo uma relação mais precisa com os
objectos e as características espaciais e temporais do envolvimento. Neste
caso, a partir da experimentação sensório-motora (mais ou menos expontânea,
consoante as possibilidades de iniciativa e criatividade do sujeito), pretende-
se estimular o desenvolvimento da actividade perceptiva e da actividade sim-
bólica e conceptual, valorizando a intencionalidade e a consciencialização da
acção, e explorando todas as formas possíveis de expressão (motora, gráfica,
verbal, sonora, plástica, etc).
Independentemente destas opções. o "espaço psicomotor" será sempre
um espaço de prazer sensório-motor, local de jogo simbólico e de represen-
tações, com uma progressiva tomada de distância por relação ao corpo, no
investimento sobre o envolvimento.
Numa perspectiva cognitivista, aceita-se a ideia Piagetiana de que as
alterações evolutivas se baseiam quer em processos biológicos de maturação,
quer da acção e da experimentação ac[Í va do sujeito, através da actividade
5. QUESTÕES SOBRE A IDENrfDADE DA PS1COMOTR1CfDADE 33
sensório-motora, utilizando as retroacções próprias da experiência para cons-
truir hipóteses mais adequadas sobre a realidade.
Wallon na sua obra, apresenta também algumas ideias relevantes para
explicar a evolução da inteligência e que são importantes para a fundamenta-
ção das práticas psicomotoras. Assim, parte-se do princípio de que a maturação
do sistema nervoso representa a base do desenvolvimento e da integração das
experiências, através de uma hierarquização das funções nervosas, desde as
mais primitivas (reflexas e automáticas) até às mais recentes de tipo voluntá-
rio, as quais apresentam maior complexidade e vão dominar as anteriores.
Por outro lado, a evolução da inteligência faz-se por uma diferencia-
ção progressiva, que parte do pensamento dito sincrético ( no qual existe al-
guma indistinção entre a imaginação e a realidade exterior) para um
pensamento objectivo, graças à diferenciação entre o Eu e o outro, entre su-
jeito e objecto.
A evolução processa-se de uma inteligência prática para uma inteli-
gência discursiva, e é pela interiorização do acto que se organiza o pensa-
mento interior. A criança orienta a sua inteligência para a acção imediata, e
é pela representação do acto que pode aceder ao pensamento. Nesta evolução
de uma inteligência prática para uma inteligência conceptual, Wallon valori-
za o papel dos seguintes processos:
- A relação da criança com o seu envolvimento social
- A imitação do outro
- A identificação do outro no espelho, o que permite a auto estruturação
do esquema corporal ao descobrir o corpo do outro
- A base da comunicação centrada na motricidade, valorizando o diálogo
tónico, que exprime as emoções e prepara o aparecimento da linguagem.
- A função tónico-postural ligada ao funcionamento das emoções e à
exteriorização da afectividade.
Este autor, diz-nos ainda que as descobertas intelectuais da criança
passsam por jogos de oposição qualitativos, antes de serem quantitativos (gran-
de/pequeno, muito/pouco, etc. levando a criança à organização do pensamento
categorial, ou seja à possibilidade de distribuir por categorias os diferentes
elementos da sua experiência, descobrindo progressivamente a causalidade e
as leis que a regem.
Por outro lado, Wallon afirma que o tónus é a função plástica que pre-
para e pré-figura o movimento, e torna-se intermediário entre o acto a execu-
tar e a situação que o comanda. A função tónica constituindo a base da vida
e da sua evolução subjectiva, está ligada à vida expressiva e intuitiva, emo-
cional e afectiva, intencional e imaginativa.
6. 34 Rur MI1RTfNS
Ajuriaguerra, foi também um autor fundamental para a fundamentação
da psico motricidade, assinalando-se a importância atribuida ao diálogo tóni-
co, e à função estruturante da função postural ligada à emoção, actuando como
mediadores nos processos de identificação e de distanciação.
Partindo destes pressupostos, e segundo as necesssidªdes e os contex-
tos institucionais, o psicomotricista modula a sua atitude para agir de manei-
ra educativa, nos contextos ditos "normais" em que se pretende essencialmente
estimular o desenvolvimento psicomotor, ou de uma maneira reeducativa ou
terapêutica, quando a dinâmica do desenvolvimento e da aprendizagem es-
tão comprometidos ou ainda quando é necessário ultrapassar problemas
relacionais que comprometem a adaptabilidade da pessoa.
Nesta perspectiva, podemos então de acordo com a concepção da Or-
ganização Internacional de Psicomotricidade e Relaxação, definir a psico-
motricidade como uma reeducação ou terapia de mediação corporal e
expressiva, na qual o reeducador ou terapeuta estuda e compensa as condutas
motoras inadequadas ou inadaptadas, em diversas situações geralmente liga-
das a problemas de desenvolvimento e de maturação psicomotora, de com-
portamento, de aprendizagem e de âmbito psico-afectivo, e no mesmo sentido,
podemos situar de acordo com Aucouturier, Darrault & Empinet (1986) como
principais finalidades da psicomotricidade:
A comunicação, gerindo a ambivalência decorrente do desejo de iden-
tificação e de dependência e a dinâmica de trocas (complementaridade,
oposição, etc ... );
- A criação, como capacidade de acção pessoal transformadora;
- O acesso a um pensamento operatório, passando de um pensamen-
to essencialmente sincrético para o estabelecimento de relações lógi-
cas entre os elementos da acção e do pensamento, com adequada
capacidade de identificar, descriminar, analisar e sintetizar a infor-
mação disponível;
- A harmonização e maximização do potencial motor, cognitivo e
afectivo-relacional, ou seja, o desenvolvimento global da personali-
dade, a adaptabilidade social e a adequabilidade do processamento
de informação do indivíduo.
Na realidade, a psícomotricidade é uma prática de mediação corporal
que permite à criança reencontrar o prazer sensório-motor através do movi-
mento e da regulação tónica, possibilitando depois a apropriação dos proces-
sos simbólicos, com forte acentuação da componente lúdica.
A especificidade da psicomotricidade, consiste em dar às crianças a pos-
sibilidade de reencontrar a harmonia do seu "ser" psicomotor - e o prazer de
7. QUESTÕES SOBRE A IDENTIDADE DA PSICOMOTRlCIDADE 35
o fazer funcionar colocando em jogo a sua faculdade de ser e de agir pelo
corpo em relação, através do movimento.
Segundo Rosmarie Schnydrig (1994), a intervenção em Psicomo-
tricidade pode situar-se essencialmente nos seguintes planos:
1. Regulação e harmonização tónica 'centrada sobre a maneira de es-
tar no seu corpo (atitude-postura, esquema corporal, descontração
neuro-muscular);
2. Movimentos funcionais e expressivos centrados sobre a maneira de
agir com o seu corpo (coordenações, dissociações, praxias);
3. Vivência da relação tónico-emocional com o terapeuta, baseada na
dimensão fantasmática do corpo e do agir.
Os instrumentos de trabalho são o corpo em movimento (o nosso e o
da(s) criança(s), como meio de relação consigo próprio, com o outro e com o
envolvimento (o espaço, o tempo e os objectos). O indivíduo manifesta-se
pelas suas posturas, atitudes, gestos e mímicas e a consciência do corpo é a
condição e instrumento da consciência de si.
A relação terapêutica funciona a partir do momento em que o terapeuta
se torna um parceiro aceite e desejado pela criança, e é a partir dessa relação
que se desenvolve a capacidade de jogar e de criar.
Neste processo, é fundamental a harmonização da relação consigo pró-
prio, o que significa reencontrar a coordenação postural baseada nas suas
componentes espaciais, rítmicas e tónicas. Implica uma tomada de consciên-
cia e a libertação progressiva dos obstáculos à acção dessa coordenação, em
qualquer atitude ou movimento e exige uma escuta atenta e de aceitação de
si mesmo e do outro naquilo que ele representa. Estamos a referirmos-nos à
capacidade de empatizar relacionando o "olhar" interior com o "olhar exteri-
or".
Essa unidade psicossomática, esse Eu Corporal e Psíquico só se perce-
be e constrói em função de um parceiro privilegiado, que num contexto
securizante permite a emergência da autonomia.
No que concerne aos aspectos fundamentais dos possíveis modelos de
intervenção e de relação, podemos assinalar alguns elementos que nos pare-
cem de primordial importância.
A centração do trabalho na perspectiva terapêutica, e na valorização
da componente psico-afectiva e relacional, está fortemente influenciada pela
corrente psicodinâmica, e vai segundo Chappaz-Pestelli (1994), permitir como
que um reviver da relação mãe-bébé: o contacto pela pele, o calor que unifi-
ca o bébé e lhe dá prazer, o frio que o reenvia para o desprazer, a postura
envolvente que acalma ou angustia, as mímicas, os sorrisos, a voz. A relação
»
8. 36 RUI MARTINS
tónica-emocional decorrente da simbiose fisiológica e afectiva da relação
precoce, é uma experiência do corpo, e o bébé está activamente envolvido
nessa experiência pelas sincronias mimicas, posturais, cinéticas e vocais. Pelo
jogo de tensão/descontração, prazer/desprazer, introduz-se um ritmo e ruptu-
ras que são suportáveis se a mãe é "suficientemente boa". É o desejo provo-
cado pela falta da mãe que permite à criança, por um lado construir-se como
Eu corporal e psíquico distinto do outro, graças ao aparecimento da repre-
sentação como percursora da função simbólica (o poder evocar a mãe na sua
ausência), e por outro lado, o construir o real, com os seus objectos, o espaço
e o tempo.
Os laços afectivos entre a mãe e a criança vão possibilitar-lhe o inves-
timento no mundo exterior e nos seus objectos, os quais funcionam como
mediadores nas trocas com o outro, permitindo uma gestão adequada da dis-
tância interpessoal.
De acordo com Donnet (1993), o local de intervenção é um local de
prazer e de desejo, para ser explorado segundo a personalidade de cada um,
com as suas inibições, a sua agressividade, instabilidade, ou descoordenação,
e os objectos são significantes ou representantes do mundo real, tangível, que
nos permitem fazer a ponte entre a realidade subjectiva, interior, e a realid~
de objectiva partilhada por todos.
No plano da comunicação, e segundo Rey & Schwab-Reckmann (1994),
a psicomotricidade utiliza todos os canais possíveis incluindo o da comuni-
cação não-verbal, particularmente quando se trabalha com pessoas que não
têm linguagem verbal, ou que não a utilizam de uma maneira socializada. De
facto, a comunicação não-verbal constitui uma verdade para além das pala-
vras, em que o corpo como estrutura espacial original e única, está sempre
em situação pela expressão corporal e pela dinâmica do movimento. A co-
municação não-verbal funciona numa articulação permanente entre o "sentir
e o mover-se", e esta expressividade assume um valor simbólico de grande
importância no desenvolvimento do processo terapêutico. Neste diálogo por
mediatização corporal, ps canais de comunicação mais importantes envolvem:
as orientações corporáis, as posturas e a distância interpessoal , as mímicas,
a gestualidade, o diálogo tónico, a respiração e a voz, a sincronia rítmica, o
contacto corporal, o olhar e o odor. Analisemos por exemplo, e de acordo
com Vecchiato (1989), o valor simbólico associado às posturas e aos materi-
ais utilizados. A posição de gatas favorece as atitudes de agressão ou de po-
der. Gatinhar com a cabeça erguida é sentido frequentemente como forma de
ameaça ou de agressão. A mesma postura, mas com a cabeça baixa implica
já uma passividade e um consentimento à aproximação. As posições de sen-
tado de joelhos ou com as pernas abertas, favorecem o encontro, o recolhi-
mento e o sentimento de segurança, e a postura de deitado assume significados
9. QUESTGES SOBRE A IDENTlDADE DA PSICOMOTRIClDADE 37
diferentes consoante se coloca em posi~ao ventral ou dorsal, com olhos aber
tos ou fechados.
Em reIa~ao aos objectos ou materiais utilizados, estes devem ser intro
duzidos nao apenas peia sua funcionalidade e utiliza~ao pnixica, mas tam
bern pelas produ~oes de tipo simbolico que vao encorajar. Os baloes permitem
uma reIa~ao com 0 proprio corpo, com contactos agradaveis e afectivos, per
mitindo jogos e trocas com 0 outro, envolvendo quer a agressao quer a coo
pera~ao. As cordas facilitam a manifesta~ao de desejos agressivos, de dominio
e de posse. Pode-se bater com elas, atira-Ias, segura-las ou amarrar as coisas.
Podem mediatizar a disUlncia, facilitar 0 jogo, a criatividade e a constru~ao.
Os arcos podem ser utilizados para rodar, saltar, bater, apanhar 0 outro, e re
presentam urn espac;o simbolico fechado, no qual se pode entrar ou sair, e
facilitar a conceptualizac;ao do dentro e fora. Os tecidos coloridos, podem
servir por exo, para envolver, puxar, esconder, ou transportar. Abrem a possi
bilidade de contruc;ao de espac;os regressivos (a casa, a toca ou 0 ninho), onde
se pode gerir a dinamica de entradas e safdas, e a proximidade ou
distanciamento do outro. 0 esconder-se e cobrir-se ou cobrir 0 outro, como
forma de experimentar a permanencia de si e das coisas fora de si.
Do mesmo modo, muitos outros objectos podem assumir-se como medi
adores da actividade, como e 0 caso das bolas, folhas de papel, rolos, espumas,
bastOes, superffcies de equilibrayiio, bancos e cadeiras, almofadas, tapetes, ins
trumentos de produc;ao sonora, etc ..., os quais podem ser utilizados valorizando
essencialmente 0 seu contetido afectivo ou racionaJ. 0 objecto pode ter urn valor
substitutivo relativamente ao corpo do outro, pode constitui-se como proionga
mento ou projec~ao do corpo no espa~o, servir de espa~o simbolico para a
exterioriza~ao de desejos agressivos, ou funcionar como mediador nas trocas
(agressivas, possessivas, de adapta~ao recfproca ou de procura fusional). No en
tanto, em psicomotricidade os processos de comunica~ao, de vern desenvolver-se
numa perspectiva integrada entre 0 verbal e 0 nao verbal.
Em suma, os nossos instrumentos de trabalho sao constituidos pel os
nossos proprios corpos, 0 espac;o de relac;ao, 0 espac;o/sala, 0 tempo e ritmos
da sessao, e os varios objectos disponiveis.
Estes meios serao mais eficazes, se existir uma atmosfera IUdica, na
qual 0 proprio terapeuta esteja envolvido, atendendo sempre ao nfvel relacional
dos sujeitos envolvidos. De facto, 0 movimento torna-se mais significativo
para as crian~as se desenvolvido num contexto de jogo, 0 qual, segundo
Schnydrig (1994), e de acordo com as concepc;oes Piaget, WaHon e Winnicott,
pode assumir caracterfsticas diversas:
- Jogos de exercicio (funcionais ou sensorio-motores) harmonizando
os gestos e aumentando a sua efid.cia.
10. 38 Rur MARTfNS
- Jogos simbólicos ou de imaginação (de ficção), os quais favorecem
por um lado, a passagem do nível sensório-motor ao nível da repre-
sentação, e por outro lado, permitem ao EU compensar ou completar
a realidade graças à ficção, eliminando os conflitos ou os medos e
antecipando os acontecimentos.
- Jogos de construção (de fabricação), que têm a sua fdnte nos jogos
simbólicos e evoluem para uma adaptação mais precisa à realidade.
- Jogos de regras Gogos sociais) que se caracterizam por certas obri-
gações comuns permitindo o desenvolvimento da cooperação e da
descentração.
A intervenção deve basear-se em situações que possibilitem ultrapasssar
os bloqueios existentes e permitam a libertação e flexibilização gestual, atra-
vés de uma atmosfera permissiva, segura e lúdica.
O terapeuta funciona como um mediatizador da relação da criança com o
envolvimento, e as suas opções técnicas terão que ser indissociáveis das
condicionantes afectivas que geraram as perturbações psicomotoras da criança.
A intervenção centrada na componente instrumental, e com maior fun-
damentação de tipo cognitivo e neuro-psicológico, privilegia segundo Fonseca
(1981) a intervenção centrada nas situações-problema. Estas são apresentadas de
forma a serem vividas como situações de êxito, estabelecendo uma relação entre
a criança e a acção, susceptível de romper com os seus bloqueios e resistências
e melhorando também a sua auto-estima e auto-confiança. A situação-problema
apelando à descoberta e ao pensamento divergente deve provocar um esforço de
atenção, favorecendo a diferenciação das fontes de informação disponíveis e a
adaptabilidade à variabilidade do envolvimento.
A colocação das situações-problema deverá envolver a linguagem oral,
quer na antecipação da actividade, quer na avaliação que deverá ser efectua-
da após a sua realização, no sentido de comparar o resultado desejado com o
obtido. Torna-se assim possível para a criança, situar progressivamente as suas
próprias possibilidades em relação às exigências do meio. A linguagem ver-
bal permite passar da experiência imediata e sincrética, à tomada de cons-
ciência, que implica um distanciamento da acção através da sua representação,
e uma elaboração da experiência vi vida e da emoção sentida.
O recurso à demonstração deverá constituir uma excepção, evitando a
utilização de modelos rigorosos e de processos sistemáticos de imitação.
Torna-se necessário situar entre o estímulo e a resposta uma fase de media-
ção cognitiva, que favoreça os processos de análise, integração e elaboração
da informação. De facto, há que promover as capacidades de reflexão, inven-
ção, expressão e transposição, possibilitando à actividade funcionar como um
escape criativo, libertador do imaginário da criança.
11. QUEST6ES SOBRE A IDENTIDADE DA PSICOMOTRICIDADE 39
Uma vez desenvolvida a experimentação sensório-motora (envolvendo
vivências que estimulem as sensações ligadas ao movimento, a integração
tónico-postural, os processos de lateralização e percepção do corpo, o domí-
nio das condições espacio-temporais do envolvimento, e a coordenação práxica
de movimentos, é tempo de aceder à representação, de deixar um traço que
reforçe o sentimento de existência e estimule a capacidade criadora e
transformadora, através da transposição perceptiva e simbólica das atitudes
ou acções. De acordo com Lapierre & Aucouturier (1978) este é o tempo de
aceder à representação e à abstração, pelo recurso à palavra, à cor, ao dese-
nho, ao grafismo e à expressão sonora, estimulando a necessidade de organi-
zação das representações, em noções fundamentais que vão conduzir ao
pensamento categorial e conceptual. Deste modo, a sessão de psicomotricidade
conduz progressivamente a criança do prazer de agir, ao prazer de antecipar,
projectando-se no futuro.
O sucesso da intervenção psicomotora depende dos processos de iden-
tificação entre as pessoas implicadas. O olhar, a mímica facial, a plasticidade
dos movimentos do corpo, são mais fácilmente integrados do que os procedi-
mentos verbais de aceitação e de compreensão.
O terapeuta deve ser um suporte da comunicação, estimulando a ima-
ginação criadora. Nao lhe compete avaliar a acção com critérios estéticos ou
de rendimento, mas sim aceitar todas as manifestações da criança como vá-
lidas. Com um bom clima emocional, o inêxito de uma situação é relativizado
e bem compreendido. O interesse situa-se ao nível da experiência e da vivência
e não do êxito ou inêxito. Não se deve valorizar a criança só pelos êxitos,
mas também pela sua capacidade relacional e afectiva.
De acordo com Bucher (1985), as situações devem ir evoluindo em com-
plexidade, variando progressivamente as condições espacio-temporais e as
circunstâncias de execução, de forma a favorecer a adaptabilidade e a auto-
nomia do sujeito.
As actividades proporcionadas pelo terapeuta, não devem desencadear
o reviver de situações ou emoções que tenham sido responsáveis pelas difi-
culdades pre~entes no plano da acção ou da relação, e o terapeuta deve de-
marcar-se da representação que a criança faz dos adultos em relação aos quais
mantém relações conflituosas ou de impasse.
O terapeuta está activamente envolvido no processo terapêutico, toman-
do consciência e interrogando-se sobre as suas atitudes, procurando alargar o
seu campo de compreensão, e alterando as suas atitudes em relação a si pró-
prio e aos outros.
A organização dos contextos de acção em psicomotricidade é também
como temos vindo a constatar, condicionada pelo tipo e grau da indicação,
ou seja, pela problemática existente. Este critério é importante para decidir
12. •
40 RUI MARTINS
se o apoio é individual, ou em pequeno ou grande grupo, se a atitude é mais
ou menos directiva, se o acentuação é mais sobre a componente motora,
cognitiva ou relacional, se se valoriza o jogo funcional ou simbólico, a
receptividade ou a expressão. Mas globalmente pode-se afirmar que a prática
psicomotora é dirigida às crianças ou adultos que se sentem mal no seu cor-
po, e que têm dificuldade em comunicar e em agir sobre o mundo exterior, e
que encontram no agir, na experimentação e no investimento corporal, um
meio para afirmar a sua presença no mundo.
Bibliografia:
Aucouturier, B. ; Darrault, L & Empinet, 1.L. (1986). A prática psicomotora, reeducação e terapia,
Porto Alegre. Artes Médicas
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